7 de mar. de 2010

Diante do nosso nariz

Hoje, publico duas reportagens escritas pelo jornalista João Valadares, do Jornal do Commercio. Matérias fortes e que dão uma chacoalhada em quem lê. Como nos impressionamos com as tragédias alheias e além mar e não conseguimos ver as nossas que se apresentam cada dia no nosso caminho, diante do nosso nariz? João Valadares prova mais uma vez que jornalismo também (e sobretudo) é sensibilidade. Parabéns, João! A foto que ilustra essa postagem não é a publicada na matéria. Não vou colocá-la porque não tenho autorização. Mas posso dizer que são cenas fortes e que, por vezes, nos recusamos a ver. Embora, esteja na nossa frente.

DRAMAS DO RECIFE
Nossos Haitis

Publicado em 31.01.2010

Cenas de terremoto no Caribe chocaram o mundo. Imagens de dor e desamparo, como as que surgem em cada esquina do Recife. Aqui, a terra nem chacoalhou, mas há sofrimento empilhado por todos os lados

Texto: João Valadares

Eleni Costa Souza é mulher de 40 anos. Mora na areia. Não levanta porque a força sumiu. Arrasta-se quando precisa de alguma coisa. Difícil mesmo é perceber sua existência. Pode chover ou fazer sol. Ela está lá, embrulhada, no mesmo lugar. Descascada de tudo, carrega um filho na barriga. Não sabe se é menino ou menina. Nunca foi ao hospital. Acha que está grávida de nove meses e há oito dias não consegue comer. Não tem força para mastigar o que nem existe. Toma só água ou o caldo de osso de sempre, catado pelo marido nos restos de Brasília Teimosa. Nêga, a vira-lata, lambe a mesma sobra, mas desdenha da comida. É o desespero que não faz barulho bem embaixo do nosso nariz, ao lado das quadras de tênis da Avenida Boa Viagem. Eleni é o nosso terremoto. Prova viva que aquele País devastado no Caribe não é visto apenas quando trocamos o canal da televisão. Está na vista da nossa varanda, na janela do carro, na esquina da gente, à espera do nosso lixo. Bem pertinho. Não sentimos, sequer percebemos. A terra por aqui nem chacoalhou, mas há sofrimento empilhado por todos os lados. Vida que já nem pode desabar. Só há chão no Haiti recifense. O reino do não. Dos que não comem, dos que não podem adoecer, dos que não recebem cartas porque não há endereço. Como lá, gente aqui virou entulho. Sobrevive por teimosia mesmo.

O tremor da gente é lento. Mata aos poucos, silenciosamente, como um cochicho de vergonha. Erivaldo Braz dos Santos, 27, é pai do filho que Eleni espera. Acorda quando o sol avisa que a pele está queimando. Feito bicho, sai, com dois amigos, para catar o que comer. Todo dia é a mesma coisa. Revira tudo. Toma cachaça de gole grande para esconder a vergonha e estender a mão aberta de humilhação para quem passa fazendo cooper. “Vergonha é roubar né não?” Dia desses, na sua missão diária para tentar se manter de pé, levantar a mulher e garantir o nascimento do filho, viu uma barraca do exército montada no 2º Jardim da Avenida Boa Viagem. Nem acreditou. Dentro, sacolas de comida enfileiradas e uma faixa enorme com alguma coisa escrita. Não entendeu, mas foi lá. “Disse que precisava comer. Não deram nada. Parece que é para aquele estado onde as pessoas estão passando fome. Não fiquei brabo não. Tenho fome, mas eles estão certos. O povo de lá tá precisando né não?” Na faixa estava escrito “Doações para o Haiti”. Mas era o Haiti de lá, Erivaldo. Uma das voluntárias da campanha confirmou a visita. “Duas pessoas vieram aqui, mas não damos comida de jeito nenhum. Esta campanha é só para o Haiti.”

Além do casal, moram no nada, na mesma areia, em frente ao Hotel Marante, Pedro Pereira da Silva, 62, Cláudio José de Santana, 29, e Edvaldo Oliveira. Pedro, que já foi mecânico, tem nas mãos um encarte de uma grande rede de supermercados, uma espécie de passaporte para sonhar. Passa devagar página por página, aponta as comidas mais bonitas, e sempre solta uma piadinha. Ele para numa página dupla da revistinha recheada de queijo, presunto, pão, camarão e uísque. É a diversão do dia. “O barato é aqui”, debocha do slogan multinacional que o provoca. Passa mais uma folha e solta outra. “O cartão ideal para equilibrar o seu orçamento.” Não aguenta, explode numa gargalhada bêbada e repete o slogan da salvação para o amigo. “Olha, o cartão ideal para equilibrar o seu orçamento.” Cláudio não entende nada.

Pedro se preocupa com Eleni. Ninguém sabe que doença a mulher tem. Parece queimadura. É carne viva. Ela mesma chuta a doença. “É o álcool que fez isso com minha pele. Não tenho força para nada. Tenho família, mas não tenho força nem para me levantar e procurar nada. Um dia um pessoal da prefeitura veio aqui, mas fiquei.” Erivaldo, que já foi dependente de crack, disse que ligou para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu). “Expliquei o caso. Liguei do orelhão a cobrar para o 192. Pediram o endereço, disse que morava aqui na areia, mas ninguém apareceu.”


O CARDÁPIO DO LIXO

No Centro de Abastecimento Alimentar de Pernambuco (Ceasa-PE), a feira que sustenta muitas famílias é retirada do lixo. É comum olhos apressados para o chão, tentando buscar o que “não serve”. Parece bicho, com cabeça dentro dos lixeiros, farejando comida para as bocas que esperam em casa. E do lixo sai tomate, mamão, melancia, verduras e muito mais. Alberto Borges mora na Favela do Chié, no Recife. Pega dois ônibus para chegar à Ceasa. “Não tenho vergonha. Preciso e venho pegar comida baleada aqui no lixo. Tem coisa boa”, diz.

Às 9h, começa a sessão de humilhação. Mulheres, crianças e velhas se aglomeram em frente ao local onde vai ser despejado o lixo da central de distribuição chamada Cantu. É aquele olhar pidão, uma súplica coletiva. A sobra de frutas podres ou amassadas é separada por apenas uma grade, mas os funcionários jogam com muita rapidez tudo para dentro do caminhão de lixo. Não dão chance para as pessoas aproveitarem o lixo que vai virar comida mais tarde. Ninguém quer perder a mão. O jeito é tentar pegar o que pode.

“Moro no Ibura. Venho para cá, mas é muita briga para pegar comida. Já levei até pancada na cabeça tentando pegar algumas maçãs podres”, diz Marluce Luiza da Silva, 62 anos. Tereza de Oliveira, 38, esperou, esperou e desistiu. “Vou embora, eles estão de marcação hoje.” Romildo José da Silva acorda às 5h. Vem de bicicleta da Favela Chico Mendes, no Caçote, na Zona Oeste do Recife. “Tenho dois filhos me esperando em casa”, diz depois de pescar um melão da lixeira. Romildo só volta para casa quando consegue encher todos os sacos. “Tô sem comida em casa. Vivo do que pego aqui pelo chão ou no lixo. Puxo carroça e, às vezes, ganho R$ 3 por dia. Essa é a vida.”

» OS NOSSOS HAITIS
Indigente até na hora de morrer

Publicado em 20.02.2010

Eleni Costa, mulher que morava na areia da Praia de Boa Viagem, morreu no último dia 4. Cadáver foi oferecido para estudos a acadêmicos do curso de medicina da UFPE

João Valdares
jotavaladares@gmail.com

E a morte mais previsível chegou. Eleni Costa Souza, 40 anos, aquela mulher de vida descascada que morava na areia da Praia de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, e teve a sua história contada na matéria Nossos Haitis, na edição do JC do dia 31 de janeiro, morreu sem ninguém saber. Ficou por lá, apodrecida, numa gaveta da geladeira do Hospital Agamenon Magalhães (HAM). Foram 12 dias sem aparecer ninguém para reclamar, para dizer “ela é meu parente”, para vesti-la. O marido Erivaldo Braz dos Santos, 27, tentou.

No dia 4 de fevereiro, quando ela morreu, saiu para buscar o mínimo pedaço de papel com o nome Eleni. Precisava provar que ela existia mesmo. Queria, ao menos, enterrá-la como gente. Não deu. A vida, justamente ela, trombou com Erivaldo no calçadão de Boa Viagem e encarregou-se do contrário. No mesmo dia, ele assaltou uma turista que fazia cooper por lá e acabou preso. Bem perto de onde, há três semanas, negaram-lhe um pouco de comida que iria alimentar o Haiti. “Vergonha é roubar” foi a frase dita a uma senhora loura que lhe explicava o motivo de não poder repassar as doações. Erivaldo foi direto para a prisão. Eleni, que nem sequer existiu, não poderia morrer de outra maneira. Como não havia nome nem nada, o cadáver não seguiu para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO). Morta, foi oferecida aos acadêmicos do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mas, no momento, não estavam precisando de corpos para estudo. Então, finalmente, recebeu o carimbo oficial de descartável. Ganhou um atestado de óbito com causa da morte ignorada e foi enterrada como indigente, como sempre viveu.

O cadáver recebeu um caixão da Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb), aquela que cuida dos entulhos. Foi coberto com pouca terra e mato na vala comum dos que nunca são percebidos. Uma cova bem rasa no fundo do Cemitério do Parque das Flores, no Sancho, Zona Oeste do Recife. Por ano, cerca de 900 pessoas são enterradas desta maneira. Sem cortejo e sem choro. Só quatro coveiros apressados para finalizar o serviço.

O JC conheceu Eleni no dia 27 de janeiro. Ela não levantava porque a força havia sumido. Difícil perceber sua existência. A mulher achava que estava grávida e há oito dias não conseguia comer. Faltava energia para mastigar o que nem existia. Sobrevivia com água ou caldo de osso. A matéria Nossos Haitis mostrou um desespero que não fazia barulho, bem embaixo do nosso nariz, ao lado das quadras de tênis de Boa Viagem. Eleni era o nosso terremoto, daqueles que matava aos poucos, no mais constrangedor silêncio.

Além do casal, moravam no nada, na mesma areia, em frente ao Hotel Marante, Pedro Pereira da Silva, 62, Cláudio José de Santana, 29, e Edvaldo Oliveira. Na manhã de ontem, Pedro estava lá no mesmo local. “Olá, estou lembrando de você. Você sabe que Eleni não resistiu? A ajuda chegou tarde. Até onde sei, ela está guardada na gaveta do hospital. Não pode sair de lá porque não tem documento.” Ninguém sabia que doença Eleni tinha. Parecia queimadura, mas era miséria mesmo. Em carne viva. “Foi o álcool que fez isso com minha pele. Não consigo fazer nada. Tenho família, mas não tenho como nem me levantar e procurar nada”, disse três dias antes de ser levada para o hospital pelo Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), no dia 29 de janeiro. Uma semana antes, o apelo de Erivaldo não foi ouvido. “Expliquei o caso. Liguei do orelhão a cobrar para o 192. Pediram o endereço, disse que morava aqui na areia, mas ninguém apareceu.”

A Secretaria Estadual de Saúde confirmou que Eleni deu entrada no Hospital Agamenon Magalhães às 17h55 do dia 29 de janeiro. Segundo a SES, havia várias feridas pelo corpo. Ela sofreu três paradas cardíacas e morreu às 14h10 do dia 4 de fevereiro. É o velho ciclo invisível de vida e morte. Mais previsível, impossível.

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